Eu não sei como vim parar aqui. Sim, recordo-me dos eventos que me trouxeram a este lamentável e doloroso instante, mas sou incapaz de distinguir como tudo isso realmente aconteceu. Em um momento, eu era um jovem promissor e cheio de expectativas para o futuro, com uma vida inteira em minhas mãos. No outro, tornei-me a personificação do porquê de homens aprenderem a não depositar suas esperanças em outros homens. Eu, como qualquer outro, sou falho. Mas não sei em que momento essas falhas tomaram posse de mim, sei apenas que me levaram à morte.

Olho para os céus. Meus braços esticados doeram tanto que já não os sinto mais. Tento me mover, mas até mesmo isso demanda um esforço descomunal. Estou a alguns metros do chão e nada mais consigo fazer além de suspirar e refletir sobre minha condição. As lágrimas vêm aos olhos, ainda que eu, orgulhoso que sou, tenha tentado impedi-las. À minha frente, outro miserável também é punido por toda a desgraça que causou. Ele me olha por um momento, um olhar cínico, mas o cansaço logo o obriga a abaixar a face.

Deve ter sido alguém como eu. Talvez tenha roubado, matado e traído. Talvez tenha odiado e disseminado o mal. Talvez a soberba lhe tenha subido à cabeça, assim como ganância e orgulho. Sim, ele é exatamente como eu. Ainda não sei como paramos aqui, mas reconheço que as mesmas tragédias nos trouxeram a este lugar.

Acho que é algo intrínseco. Se o mal estende suas mãos para mim, eu as agarro, cedendo às suas promessas vãs, porém tentadoras. Sempre foi sobre querer satisfazer minhas próprias vontades e tomar os caminhos mais curtos para isso. É natural. É impulsivo. Sinto esse desejo pulsar em meu interior e percorrer cada linha de corpo. É difícil controlá-lo, pois se agarra à minha carne e não posso me livrar dele. Sussurra constantemente em meus ouvidos, um tom sedutor que me induz a pensamentos malignos.

Fraco que sou, não consigo impedir. Nunca consegui. Sempre foi assim. Sei, em meu coração, que não devo fazê-lo, mas meu corpo não resiste às tentações. Sinto como se a própria morte habitasse em mim e me movesse em direção àquilo que a fortalece. Devido às minhas fraquezas, hoje não encontro descanso, pois estou convicto de que não há repouso para um malfeitor como eu. O pior de todos.

Eu… ainda não sei bem como vim parar aqui. Sei, apenas, que não há redenção para mim. Tudo bem, eu acho. É o preço a ser pago. É assim que tem de ser.

Acho que apaguei. O calor é intenso e o suor cai sobre meus olhos. Meus braços estão dormentes e as pernas roxas. Não sinto o sangue em meu corpo seguir seu fluxo. Minha consciência se esvai aos poucos, entregando-se ao sono eterno, pelo qual meu corpo implora para dar fim a esta tortura. É assim que é a morte? Gradual e desesperadora? Bem… acho que mereço isso.

Porém, algo me chama a atenção. A poeira sobe no horizonte e logo percebo que uma multidão caminha nesta direção. Ouço seus gritos, muito embora não possa distingui-los. Mas posso captar a entonação: há raiva, desprezo e escárnio. Uma multidão que emana ódio. Deve ser mais um igual a mim e a meu colega, que, aliás, também se atenta à marcha de almas perdidas. Ele sorri, novamente com cinismo. Eu, por outro lado, só consigo me sentir triste e vazio. No pouco tempo que me resta de vida, apenas sinto desespero e em breve serei acompanhado de mais uma alma atormentada. Não há paz em lugares assim.

A multidão se aproxima. Consigo, enfim, entender suas palavras. Há quem chore e quem lamente, mas há muitos que o zombam. “A si mesmo se salve”, ouço algum soldado dizer. Não consigo enxergar o sujeito a quem tais palavras são proferidas, mas carrega consigo uma cruz. Apenas isso posso enxergar, e não muito mais.

Há quem fale algo sobre o filho de Deus. Seria possível?

Mas… Eu ouvi tantas coisas sobre o sujeito. Não, não pode ser. Ele não  viveria num lugar como esse. Um lugar perto de mim.

Seu rosto está encharcado de sangue, suor e terra. É terrível de se ver. As pessoas cospem e atiram pedras. Muitos o desprezam e lançam, sem pudor, palavras que ninguém mereceria ouvir, principalmente aquele homem, se as histórias forem verdadeiras.

A crueldade é infinda. Há algo de macabro no olhar do público ensandecido, e os soldados sorriem prazerosos diante de todo aquele cenário. Açoitam-no com chicote e ofensas; pregam-lhe as mãos e pés, ignorando seus gritos de dor. Meus braços já não incomodam mais, tampouco as pernas, diante de tal bestialidade e frieza. Meu coração aperta ao testemunhar o ocorrido e meu primeiro impulso é afastar o olhar.

O que ele fez para merecer isso?

Logo o erguem em sua cruz. Uma coroa lhe é posta sobre a cabeça, cujos espinhos penetram sua pele até que brote sangue das novas feridas. Sua respiração está pesada e ofegante, e o sofrimento é evidente. Quero afastar o olhar, mas há algo que me puxa de volta. É agoniante vê-lo naquela condição, mas o rosto, por mais sujo e machucado que esteja, me traz uma sensação de… consolo?

— Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.

Sim! É Ele. Neste momento em que sua voz rouca e cansada soa em direção aos céus, tenho a clareza de quem Ele é. Ouvi as histórias. Os milagres. Sei de quem Ele é filho. Sei de tudo o que fez. É o próprio Cristo e, em meu íntimo, tenho essa certeza. Aquele que se fez menor do que todos. E Ele está diante de mim, como um mero malfeitor. Um homem que jamais se apresentaria diante de um Rei.

Dando-me conta de quem Ele é, percebo, mais uma vez, quem sou. Então, envergonhado, volto meus olhos à terra, pois sei que sou indigno de contemplá-Lo.

— Não és tu o Cristo? – provoca o outro homem crucificado; sua voz, como todas as outras, repleta de desprezo. — Salva-te a ti mesmo e a nós também.

Algo irrompe dentro de mim ao escutar tal desdenho. Eu sei quem sou e o que fiz para estar ali. Tenho a morte em minha carne e, por não seguir as leis, me perco para o mundo. Abandonei a luz e, portanto, não mereço qualquer graça. Mas aquele homem é o total oposto de tudo o que eu sou. Ele venceu as tentações e os pecados. Ele trilhou um caminho perfeito. Ele amou as pessoas, independente de quem fossem. Ele não é como eu e, sendo quem é, não merece estar aqui. Mesmo sem ter presenciado seus feitos, eu sei, em meu coração, quem Ele é e o que fez.

Talvez por ter tal certeza em meu interior, sinto-me incumbido a defendê-Lo:

— Nem ao menos temes a Deus, estando sob igual sentença? Nós, na verdade, com justiça recebemos o castigo que nossos atos merecem; mas este nenhum mal fez.

Mediante o silêncio, volto meu rosto para Ele, que me encara. Apesar de tudo o que passou e do peso de seu sofrimento, olha-me com carinho, tal qual um pai amoroso que admira o próprio filho. E, por um breve momento, sinto a paz e a alegria as quais busquei por toda a vida, mas que nunca encontrei. Estou sob o olhar do Rei dos reis, do próprio Salvador, e isso me basta. Diante de tamanho amor e perdão, expressos em um simples olhar, posso sucumbir à morte sem queixas. Estou, enfim, pronto para enfrentar as consequências de meus atos malignos.

Com a voz trêmula e cansada, faço meu último e mais genuíno pedido:

— Jesus, lembra-te de mim quando vieres no teu reino.

Ao que Ele, sem voltas, abre os lábios em um singelo sorriso e me responde:

— Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.

Eu não sei como vim parar aqui. Sim, lembro-me de todas as minhas ações e de todo o mal que fiz. Continuo sem saber por que nasci com o mal em meu interior. Mas, agora, nos meus últimos minutos, encontro a verdadeira esperança. Ela está personificada diante de mim, e me faz promessas do descanso que sempre busquei. Sim. Nele há o verdadeiro consolo e é isso que sinto no mais profundo canto de meu interior.

Sinto Seu perdão.

O céu escurece e Ele, enfim, dá o último suspiro. Mas eu não sinto medo. Sinto apenas paz. A verdadeira paz. Aquela que as coisas terrenas nunca puderam fornecer. Pois sei que o próprio Cristo fez uma promessa, à qual ouvi com meu coração, e agora fui redimido.

Por mais que as sombras de morte sussurrem em meus ouvidos, já não as ouço mais, pois em mim habitam as palavras de meu Senhor – aquele que, mesmo sabendo quem sou e o que fiz, teve misericórdia de mim.

Eu não sei bem como vim parar aqui. Sei, porém, que agora posso sorrir.